Você Pode Ir Na Janela

touching from a distance

Luke.
7:35 PM, marca o velho relógio de madeira sob a estante da sala. Cá estou mais uma vez a observar aquele que se tornou minha mais recente obsessão da janela de meu quarto que fica em perfeita simetria de frente para sua sala de estar. O engraçado é que não sei praticamente nada sobre ele. Apenas que veio de Seaford e que sai para trabalhar as 6:30 da manhã e só volta as 7:30 da noite, e leva 5 minutos para chegar a seu apartamento de paredes azul claras repletas de retratos em preto e branco de Charlie Chaplin, as quais ele tem o hábito de observar com tanta admiração durante as tardes de domingo, sentado em uma surrada poltrona preta de couro sintético, na companhia de uma caneta e um grosso caderno universitário de capa-dura. Já havia ouvido rumores de que trabalhava como fotojornalista no The Sun, mas nada ao certo. Também sei que de tempo em tempo, quando volta do trabalho com a aparência cansada e inconsolavelmente triste, sempre tira do meio de uma pilha de discos, um com uma capa escura, completamente gasta. Ele o coloca cuidadosamente em seu toca-discos e, instantes depois, aquela fisionomia abatida parece simplesmente desaparecer de seu rosto e ser substituída por um radiante e admirável sorriso. Parece comprazer-se de cada acorde tocado na música. Pronuncia cada palavra da melodia com gosto, saltitando alegremente pelo cômodo, levado pelas notas que ele parece tanto amar. ‘I had such a night come true. Overhead, morning skies all for you.’ Foram os únicos versos que consegui ler por seus doces lábios. Diariamente ele me deixa acorrentado a minha janela, observando-o, tão ingênuo, tão exclusivamente belo. Será que algum dia o encontraria e teria coragem de dizer-lhe que tinha meu coração em suas mãos sem mesmo ter comigo trocado um mísero olhar? Bem, talvez não. Talvez esteja eternamente fadado a ser apenas uma sombra silenciosa que observa cada gracioso gesto que faz. Apenas a sombra em frente à sua janela.

Paul.
7:15 da noite. Hora de deixar o escritório podre do The Sun e voltar para meu frio caixote de paredes azuis que chamo de casa por não achar um termo melhor apropriado à sua aparência. 7:30, chego no meu prédio de esquina como de rotina, tentando disfarçar a pressa que tenho de chegar à sala de estar e passar o resto da noite olhando discretamente pela janela. Para ele. Aquele que se quer o nome sei, mas que me tira o sono de tantas noites e me faz suspirar pelos cantos escuros da casa, onde me escondo e fico a lhe observar, rezando para que não note que pobre diabo patético que sou. Preso por trás desse vidro e de meus temores de rejeição e humilhação, sem coragem o suficiente para simplesmente atravessar a rua e dizer-lhe como apenas o contorno de sua sombra, tão frágil e distante, que observo da sala de meu apartamento faz meu mundo parar de girar, faz cada momento que passo admirando essa sombra parecer uma delirante eternidade. E esta noite não poderia ser diferente. Sozinho, na sala de estar escura iluminada somente pela luz da lua e das estrelas, enquanto a cidade dorme, só o que ouço é o som do delicado toque de seus dedos nas cordas do violão. Acordes pairando pelo ar no som de sua voz tão encantadora atravessam a escolta de vidro de minha morada e fazem estremecer até o último átomo de minha existência. E vêm acompanhados de palavras tão belas. Será que algum dia hei de ser a fonte de tanta paixão escrita em melodia? Decerto que não. Não enquanto eu continuar sendo o covarde que sou. Acorde, Paul. Ele nunca notaria um mero espectro parado na janela.